sábado, 1 de abril de 2017

Comida gostosa e nosso centro de recompensa


Por que é quase impossível resistirmos àquele sorvete cremoso, a um chocolate ao leite ou  a um vistoso pedaço de pizza?

Há uma explicação fisiológica: é por causa do nosso cérebro, que comanda tudo. Ele está no controle e domina todo o equilíbrio hormonal, inclusive quando se trata da fome, da saciedade e até da compulsão alimentar. 

Durante nossa evolução, nosso organismo se adaptou para acumular gordura, ante a escassez de comida e a imprevisibilidade de se encontrar uma caça a cada dia. Manter músculo é muito trabalhoso e energeticamente desgastante. Muito mais fácil e cômodo para o corpo ingerir alimentos calóricos e deles retirar a energia fácil da glicose.

Mas como será que nosso sistema nervoso reage frente a um alimento altamente calórico?

Confira a explicação:

" DESDE QUE O MUNDO É MUNDO, SEU CÉREBRO se prostitui em troca de calorias. Ele até sabe que salada é mais digna para a saúde, mas se vende por qualquer porção de gordura e açúcar que apareça. Isso vem de longa data. Como nossos ancestrais não podiam comprar filés e batatas congeladas no mercado mais próximo, saíam à caça para garantir o jantar. Só que nem sempre o dia de trabalho rendia. 

O cérebro, que pensa em tudo, criou mecanismos de sobrevivência para livrar a espécie da extinção em tempos de gazelas magras. Um deles foi estocar qualquer caloria excedente em forma de gordura. Assim, o corpo poderia recorrer a essas reservas internas quando o mundo lá fora estivesse muito cruel. 

Outro foi aprender a identificar, pelo cheiro e pelo gosto, os alimentos mais energéticos, que costumam ser adocicados. Já os maiores venenos da natureza são amargos – nossa aversão a eles é fruto de uma engenhoca neural de preservação. 

Mas como convencer alguém a comer mais do que precisa para acumular reservas de gordura, quando a fome já foi embora? Nunca menospreze o poder do cérebro. Ele desenvolveu um circuito chamado centro de recompensa

Toda vez que você come um alimento bem calórico, estimula essa região a liberar uma descarga de dopamina, a substância inebriante do prazer. A sensação é tão boa que dá vontade de repetir sempre, em um processo parecido com o da excitação sexual. 

“O funcionamento das áreas ligadas ao raciocínio e ao pensamento lógico é reduzido, e a atividade nas regiões mais profundas e mais antigas do cérebro, que são responsáveis pelas emoções e pelos instintos, aumenta”, detalha o neurologista Leandro Telles. 

Na prática, acontece assim: quando as reservas de energia estão baixas, o corpo produz hormônios que estimulam a fome. Os sentidos, como a visão e o olfato, ficam aguçados. Aí, você vê uma comida (ou sente o cheiro ou então pensa nela) e já começa a salivar. Seu estômago se prepara liberando sucos gástricos que vão dissolver toda a refeição. 

Quanto mais calórico for o alimento, mais seu cérebro fica animadinho. Um grama de gordura tem nove calorias. Um grama de proteína pura, quatro. Um de quiabo, 0,04. Daí o sucesso do hambúrguer e a agonia dos vegetais. 

Quando você morde um cheeseburguer, é recompensado com uma bela dose de dopamina e se sente mais feliz instantaneamente. Para o cientista alimentar americano Steven Witherly, o cérebro é capaz de calcular quanta energia – e, portanto, dopamina – cada alimento vai gerar durante o processo de mastigação e digestão. 

Os sensores para isso estão em toda parte: na língua, no céu da boca, no nariz, nos olhos, na garganta, nas células de gordura. Fora que existem 100 milhões de células nervosas no sistema digestivo. Ele diz que quanto mais calórica e agradável for a comida, mais seu cérebro vai querer repeti-la. 

Vamos imaginar esse processo acontecendo com os nossos ancestrais, mais especificamente depois que descobriram o fogo, há 2 milhões de anos. 

Do fogo, vieram rapidamente os cozidos de vegetais e a ideia de fazer o primeiro churrasco da humanidade – que ainda não era composta por Homo sapiens, surgidos há 200 mil anos, mas por nosso avô evolutivo, o Homo erectus. O calor quebra as moléculas dos alimentos em pedacinhos menores. 

Assim, fica tudo mais fácil de mastigar e de ser aproveitado pelo organismo. Ou seja, cozinhar é fazer uma pré-digestão fora do corpo. Isso também explica outra tentação alimentícia: a dos alimentos cremosos (cozidos ou não). Sorvete, chocolate, musse, manteiga, recheio de bolachas, requeijão, purê de batata, queijo derretido, molhos. 

Tudo isso dá mais água na boca que a maior parte dos alimentos sólidos justamente porque é mais fácil de digerir – leva as calorias do prato para as suas células com mais eficiência. Não é à toa que as crianças fazem questão de abrir a bolacha doce para raspar o recheio... 

Mas voltando ao fogão: comparado a um alimento cru, o cozido fornece até três vezes mais energia, que é sinônimo de caloria. Amido, por exemplo. O amido da batata, do trigo, da cevada, do arroz é composto por duas moléculas: a amilose e a amilopectina. Quando o vegetal está cru, as duas ficam bem grudadas. 

E quase inacessíveis ao sistema digestivo. Quando o amido vai para o fogo, as duas se separam e fornecem energia para o corpo. Por isso, os alimentos cozidos são mais calóricos – e por isso que ninguém saliva diante de uma batata crua ou de um pé de trigo, mas tem uma reação bem diferente quando vê uma porção de batata sauté, um pão quentinho ou uma lasanha. 

Com a carne, o alimento básico dos nossos ancestrais, não é diferente. Carne crua até é atraente (os carpaccios e os sashimis estão de prova), mas o cozimento dá uma bela força: o fogo de certa forma quebra as proteínas da carne, tornando-a mais amigável ao sistema digestivo. E fazendo com que um bife seja mais calórico que um naco de carne crua. 

Obter mais reservas calóricas em menos tempo permitiu aos nossos avós hominídeos se dedicarem a outras funções, como a criação de ferramentas mais eficientes para colher e caçar. 

Quando homens e mulheres da savana africana (o habitat natural dos nossos antepassados) se reuniam para um churrasco, não faziam ideia que hoje estaríamos aqui comentando a vida deles. Mas eles foram importantes, porque o cozimento pode ter contribuído para o desenvolvimento do nosso cérebro. 

É o que defende o antropólogo americano Richard Wrangham, professor de Harvard. Ele acompanhou durante um ano a rotina de chimpanzés na Tanzânia para estudar seus hábitos alimentares, comendo tudo o que eles comiam. A maior parte da dieta era de folhas e frutas fibrosas, amargas e pouco calóricas, muitas vezes protegidas por cascas duras que tinham de ser removidas – dá-lhe gasto energético para retirar a polpa. Os chimpanzés passavam mais de seis horas mastigando para sobreviver, com intervalos que duravam, em média, 18 minutos. 

Era o tempo de dar uma voltinha e, sem muito esforço, ver se conseguiam caçar alguma presa que estivesse por ali dando sopa. Um homem adulto leva de um quinto a um décimo do tempo para dar conta de suas necessidades calóricas. Nossos amigos primatas têm cerca de 28 bilhões de neurônios – nós temos 86 bilhões. 

E como nossas células nervosas realizam atividades mais complexas que as dos chimpanzés (ou pelo menos deveriam), elas consomem de 20% a 25% da energia disponível. 

Em outros animais, o cérebro fica com 8% do que é comido. Ou seja: de cada 2 mil calorias que consumimos, 500 vão só para a massa cinzenta e o sistema nervoso. Seriam necessárias mais de nove horas por dia mastigando o que a floresta tem a oferecer para obter tudo de que precisamos. 

Conclusão: só temos um cérebro enorme e com mais neurônios por centímetro quadrado porque aprendemos a tirar mais calorias da comida. Somos a única espécie que cozinha. 

Logo, nos tornamos a única capaz de alimentar um cérebro altamente complexo – e sem o incômodo de passar o dia todo se alimentando. Mesmo assim, nossos ancestrais conviviam de perto com a escassez. 

Eles se estabeleciam em um lugar, caçavam os animais e colhiam os vegetais disponíveis. Mas uma hora a fonte secava e eles tinham de fazer as malas para achar outro canto. O cérebro turbinado, no entanto, levou a ideias brilhantes, como plantar sementes e domesticar animais para o consumo. 

Em tempos cruéis, eles teriam uma bela reserva. Em lugares com solos bem férteis, então, mudariam o mundo. E mudaram, mais ou menos em 10 mil a.C., numa região extremamente fértil ao redor de dois grandes rios, o Tigre e o Eufrates, onde hoje fica um pedaço do Iraque, da Síria, da Turquia e do Líbano. 

Foi provavelmente ali que a seleção natural das plantas mais calóricas e dos bichos mais gordos fez nascer a agricultura e a pecuária. E permitiu ao homem se estabelecer em locais por mais tempo, criando comunidades, depois cidades, leis e funções sociais cada vez mais específicas. Reservas maiores de comida significaram também mais tempo livre – e desse tempo livre nasceu a engenharia, a escrita... 

O trigo tem uma participação importante nessa história, porque se adapta mais facilmente a condições climáticas diferentes e pode ser cultivado com sucesso em várias regiões do planeta. 

É assim também com o milho, a soja e o arroz. Eles são fáceis de transportar e não estragam tão facilmente. Estaria tudo muito bem se a evolução não tivesse se deparado com o surgimento do disque-pizza." (trechos do livro "Prato Sujo", de Márcia Kedouk, editora Abril)

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